triviais

Tardes Triviais

Um dia ela escutou que a solidão era só mais um carinho malvado do grande amor, tudo já elaborado pra gente sentir saudade. E sentiu vontade de chover e de contornar as traças e desentupir as calhas do peito, da casa, do pulmão, com todo aquele amor que tinha e cair no jardim, ir descendo fundo no solo úmido até que os girassóis, que ela cuidava todo santo dia, sentissem um pouco de saudade. Sentir a terra como parte de seu próprio corpo como sentia quando era uma menina branca, pobre e com o cabelo fora de moda. As modas que escutava do pai preenchendo-a de esperança e de desejo; daquelas cordas de violão suadas, surradas, atrasadas, ela se sentia dona dos segredos do horizonte. A iluminação tão parca criava um espectro bonito de estrelas cheias de mistérios e maldições, a mãe ríspida dizendo que não deviam olhar, que não deviam apontar, mas ora essas meninas! E ela que tola não era, olhava tudo ao redor e tudo sentia. Talvez fosse a puberdade chegando, talvez fosse porque olhava demais as estrelas e tivesse sido amaldiçoada, ou quiçá um possível castigo divino por desafinar não só uma vez as cordas do pai, mas ela crescia em suspiros.

Suspirava, e a dor que sentia era a dor dos conscientes da desgraça. Frequentava uma escola barulhenta, engolia uma sopa salobra e então começava a lavar as roupas de D. Maria e, deus me livre se chover. Era ela quem cuidava das irmãs pequenas e ignorantes; quem contava com a ausência do pai, devoto de baralhos e bebidas; e era ela quem devia lidar com o desencanto mórbido da mãe distante, enfiada numa cidade grande a cuidar do filho doente. Ainda que esquecida em um bairro esquecido de terras distantes ao norte, ela imperava entre os seus com a firmeza e doçura de meninas que se desvendam e crescem só. Tocava sorrisos, cortava cabelos, dava sermões e tirava piolhos de quem precisasse ali.

Um dia desejou morrer, e era só uma dor dente. Mas só quem já teve dor de dente como as dores de antigamente sabe o que é sentir-se um grande coração latejante, com a sístole bem no meio da gengiva, o átrio-ventricular desesperado, toda aquela dor sanguínea se espalhando pelo pescoço, pelos braços, mais a febre, mais o frio.  Foi nessa época que ela quis escrever “Ser coração dói, de todas as formas possíveis”, mas a agonia era grande e ela não alcançou o caderno de acordes a tempo: esqueceu-se. O pai não sabia o que fazer quando ouviu, no murmurante posto de saúde, que o único dentista da cidade foi de férias. A pequena transformava-se, aos poucos, em um coração puído e amarelo, dolorosamente palpitante. Podia-se ter passado dias ou meses até que apeasse, bronzeado, o dentista, dizendo: “danou-se, só resta rancar”.

Como aquelas piores dores, as dores mais necessárias para que permaneçamos vivos, soaram as palavras daquele ser vestido de branco. E eram como agulhas lá atrás na gengiva.

Ela voltou pra casa e já não se sentia mais a menina de antes, menos por não ter a metade dos dentes de outrora do que por continuar acompanhada da dor ou da lembrança da dor. O pai, italiano e desesperado por natureza, fez o que aprendeu com os índios que da região e deu-lhe fumo em papel para, dizia, apaziguar as perturbações do corpo e da alma.

E hoje ela sente que a partir daqueles dias começou a crescer, principalmente ao perceber que era preciso se portar com fugazes ímpetos de vida em cada circunstância. Assim terminou a escola, a graduação, a pós-graduação, e começou a trabalhar. E tudo isso, banguela. Banguela na alma, lá atrás. Banguela como vinha sendo desde aqueles dias, dos quais o fumo se espalhou pelo resto deles.

Não se lembra exatamente quando, mas trabalhou duro e parou de ser banguela; casou-se com um pedreiro-guarda-estudante-babá dos irmãos como ela uma vez fora, e estava certa da combinação precisa do gênio ambicioso e amalucado dos dois.

Naquele fim de tarde de maio, a mulher que ela se tornou parou para pensar que ela era chuva e que era terra de girassóis. Estava na puberdade de novo, a sentir tudo ao seu redor. Era assim que sempre acontecia quando tentava parar de fumar. Ficava contraída e sensível. Nunca por dependência física, mas por escavações na memória do coração banguela da moça, que começava a se lembrar do dentista bronzeado, da fome, da dor, da falta de tudo, e se insistisse em um projeto saudável de vida, adoecia-se na alma. Em todas as vezes que tentara, vidas passadas e inomináveis voltavam, jorrando, num baque surdo e violento de cachoeira. Haveria choro e cigarro trêmulo, ressentido, aliviado.

Ela sorria em meio a tudo isso, que era como um tumor que guardava daquela época, por certo incurável. E embora ela ache toda essa história uma baboseira (trivial ela realmente é), e embora nunca vá parar de tentar, como sempre persistiu e lutou para viver, ela correu e, ciente de sua total falta de dom para a literatura, escreveu: “Cada qual com seu coração”.